Como
todas as religiões, o cristianismo se ocupa dos valores éticos e morais, a fim
de proporcionar, através da conversão, a transformação do comportamento humano.
Tendo adotado como norma de vida a busca do bem- estar a qualquer custo, a
sociedade moderna rompeu com a ética, e portanto com a religião em geral. Já
não há preocupação com o decoro. Episódios recentes, envolvendo conspícuas
figuras de homens públicos, são o retrato fiel e melancólico de quanto a
mentira, o ódio, a hipocrisia e a fraude tomaram conta da sociedade. Como
Igreja, não podemos nos omitir em comentar e condenar estes episódios, a fim de
alertar o povo de Deus quanto ao mundo que o cerca. Ao enviar os doze ao
cumprimento de missões pelas cidades de Israel, Jesus preveniu-os quanto ao
ambiente onde haveriam de pregar o Evangelho: "Eis que vos envio como
ovelhas ao meio de lobos; portanto sede prudentes como as serpentes e simples
como as pombas", Mt 10.16.
Este
artigo tem o propósito de refletir sobre os três aspectos do cristianismo e
proporcionar aos obreiros reflexões que sirvam de suporte às suas decisões à
luz da Palavra de Deus.
Sendo
a Bíblia a revelação de Deus ao homem, é também um código de ética, e concede
base teológica às nossas obrigações morais. Através dela, compreendemos a
necessidade de nos submetermos à vontade de Deus e, uma vez convertidos,
adotamos mudanças às vezes radicais, para pôr em prática a fé. "Vós sois o
sal da terra, disse Jesus, e se o sal for insípido, com que se há de
salgar?". Como discípulos, temos a dupla função que cabe ao sal: dar sabor
e conservar e preservar contra a degeneração. Meditemos.
1. Aspectos teológicos: a aliança
Verifica-se
no Gênesis que Deus inicialmente fez alianças individuais, primeiro com Noé e
depois com Abraão, dois homens em quem a sinceridade e a justiça brotaram
espontaneamente, fruto da "Lei da Consciência" a que mais tarde se
referiria Paulo, no capítulo 2 da epístola aos Romanos. Sendo Deus magnânimo, e
não fazendo acepção de pessoas, era necessário ampliar essa aliança, porquanto,
ao chamar Abraão, já prometera que nele seriam abençoadas todas as famílias da
terra. Saindo do meio de sua parentela para uma terra distante, por onde
peregrinou, Abraão torna-se inteiramente dependente da vontade de Deus, cedendo
espaço para a operação dessa vontade em lugar da sua própria.
Diz o relato do Gênesis: "E creu ele no Senhor, e foi-lhe imputado
isto por justiça", Gn 15.6. No Sinai, revelando- se Deus a Moisés, deu-se
o primeiro passo para a ampliação dessa aliança, que, tornando-se comunitária,
estende a todo o Israel ao alcance de um pacto que, originalmente fora feito
apenas com o patriarca. Surge o povo eleito, fruto dessa dinamização, que
promove o encontro de Deus com o homem, do eterno com o temporal. Sua síntese é
a Lei Mosaica, a Torá, que o próprio Deus ordena seja escrita para servir como
prova documental do novo concerto (Êx 34.27). Assim como Abraão, Israel assume
um compromisso de vida debaixo da vontade de Deus.
Todavia,
para que se cumprissem as promessas de Deus, feitas desde o Éden, faltava o
passo definitivo, a aliança total e abrangente, que englobasse toda a humanidade.
Ei-la, finalmente, no Movo Testamento, posta ao alcance de todos os povos,
tribos, línguas e nações: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de
muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias
pelo Filho, o qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da
sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo
feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da
majestade nas alturas", Hb 1.1-3.
No
Sermão da Montanha, Jesus torna a aliança bem nítida, quando mostra as
diferenças entre a sua proposta e o que fora dito ao povo no pacto do Sinai:
"Ouvistes que foi dito aos antigos (...) eu, porém, vos digo", Mt
5.43- 44. A nova aliança, realizada mediante o sacrifício do cordeiro de Deus,
tem como principal característica atuar através dos dons do Espírito Santo, que
antes repousava apenas sobre alguns, mas agora é derramado abundantemente,
conforme a profecia de Joel 2: Derramarei o meu Espírito sobre toda a carne.
O
Espírito Santo revitaliza o homem através do novo nascimento. Os mestres de
Israel, não compreenderam a extensão da proposta de Jesus. Observamos isto
claramente no diálogo com Nicodemos, no capítulo 3 do Evangelho segundo João,
quando o fariseu se surpreende, e pergunta, admirado a Jesus:
"Como
pode um homem nascer sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre de
sua mãe, e nascer?", Jo 3.4.
Mais
adiante voltaremos a abordar o novo nascimento, a síntese dessa nova aliança,
muito mais ampla do que o pacto do Sinai, incorporando agora toda a humanidade.
Já não há exclusividade para a descendência carnal de Abraão, mas todos quantos
receberem Jesus Cristo como seu Salvador serão contados como filhos de Deus.
2. Aspectos morais
Compreendida
e aceita a nova aliança, entra em vigor um novo pacto, e já não importa o que
foi dito aos antigos, conforme verificado no Sermão da Montanha. Importa agora
reconhecer o senhorio de Jesus, para que as grandes mudanças comecem a
modificar o comportamento do homem: "E conhecereis a verdade e a verdade
vos libertará", Jo 8.32. Um dos mais interessantes dilemas morais que
encontramos nas Escrituras, retrata exatamente a operação dessas um mudanças no coração de outro fariseu, Saulo de
Tarso, o perseguidor da Igreja, que assentara em seu coração dar cabo daquele
punhado de abnegados, que já espalhavam o cristianismo por toda parte.
Saulo,
já transformado em Paulo, preso, depara-se com Onésimo, escravo fugitivo, que
se convertera, passando a servi-lo como companheiro de cárcere. Sendo a
escravidão uma instituição legal, (e os países ditos cristãos levaram 18
séculos para suprimi-la) seria perigoso para Paulo insurgir-se contra ela,
colocando a serviço do Evangelho um escravo fugitivo. No capítulo 13 da
epístola aos Romanos, podemos notar a preocupação do apóstolo em submeter-se às
leis vigentes. Era-lhe, portanto, necessário, até por coerência, conviver com
aquela instituição iníqua, mas conseguir a liberdade de Onésimo. Lendo
atentamente a carta a Filemon, vemos com que sutileza Paulo procura convencer o
destinatário a libertar o escravo.
Primeiramente,
no versículo 2, vemos que a carta em vez de ser um documento estritamente
pessoal, é também dirigida à igreja, parecendo indicar que o apóstolo esperava
fosse exercida pressão sobre Filemon para que libertasse Onésimo. A seguir, com
extrema habilidade (v4-6), apela às próprias convicções daquele, para,
pedir-lhe a libertação do escravo: "Pois, acredito que ele veio a ser
afastado de ti temporariamente, a fim de que o possuas para sempre, não já como
escravo; antes, muito acima de escravo, como irmão caríssimo, especialmente de
mim e, com maior razão de ti, quer na carne, quer no Senhor", v 15-16.
Afinal, Paulo aprendera com Jesus, que a nossa justiça precisa ser maior que a
dos fariseus, isto é, se não praticarmos o que pregamos, somos apenas sepulcros
caiados, simulacros da verdade. Podemos identificar aqui dois aspectos
importantes.
A questão moral e a questão social, que podem ser
colocadas em duas perguntas:
a)
Que mudanças deveria o cristianismo operar no comportamento do convertido, que
pudessem comprovar nele o novo nascimento?
b)
De que maneira exerceria o seu papel libertador, não somente no indivíduo, mas
também na sociedade?
Estudiosos
do assunto calculam que somente no Império Romano existiam 20 milhões de
escravos nos tempos de Jesus. Eis aí não somente uma das razões pelas quais os
governantes tremeram diante da mensagem libertadora do Evangelho, mas, também,
um forte argumento de que os fariseus e sacerdotes lançaram mão para livrar-se
de Jesus, convencendo o povo e as autoridades a decretarem sua morte.
O
cristianismo promove transformações radicais tanto no indivíduo quanto na
sociedade. E o momento culminante da história da salvação do homem. Deus já
falara no passado através de patriarcas e profetas. A velha aliança promovera
uma reaproximação com Deus, mas era chegada a plenitude dos tempos, a que se
refere o autor da epístola aos Hebreus, e Deus queria falar através de seu
próprio Filho. Jesus é a expressão da fidelidade de Deus às promessas feitas ao
homem, ainda no Éden. Ele estava no princípio com Deus, conforme lemos no
relato de João. Portanto é Dele que tudo provém.
O
Velho Testamento aponta para Ele, como o ungido. No Novo Testamento, é modelo.
Em ambos é o centro, embora tenha sido, ao longo da História, sinal de
contradição. Foi escândalo para judeus e loucura para gregos (1 Co 1.23). O
sinédrio o proclamou réu de morte (Mt 26.66). Também existiram testemunhas que
não vacilaram em entregar a própria vida em nome da sua fé em Jesus Cristo.
O
cristianismo promove o reposicionamento ético e moral, resultante da aplicação
prática de seus princípios. Escrevendo aos Gálatas, o apóstolo Paulo enumera
como fruto do Espírito as virtudes decorrentes dessa transformação: "amor,
alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão,
temperança. Contra estas coisas não há lei. E os que são de Cristo Jesus
crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências. Se vivemos no Espírito,
andemos também no Espírito", Gl 5.22-25.
3. O CRISTIANISMO E A QUESTÃO social: o Deus libertador
O
Novo Testamento faz muitas referências ao êxodo e à Páscoa. Não a esta
páscoa" do coelhinho ovíparo, paganizada e banalizada pela mídia, mas à
Páscoa do anjo libertador, que numa só noite exterminou todos os primogênitos
do Egito, desde o palácio real até os currais, onde visitou humanos e animais.
A presença do anjo tinha como propósito libertar Israel. Mostrar a faraó que
Jeová tinha um compromisso com o seu povo, e seria perigoso resistir a um Deus
assim, que no dizer de Isaías trabalha por aquele que nele espera (Is 64.4).
Diz a Bíblia, em Êxodo 3.7- 8, que Deus viu atentamente a aflição do povo,
ouviu o seu clamor, conheceu as suas dores, e desceu para libertá-lo. Estava
consumado o primeiro ato da libertação, e começava o segundo: o êxodo. Jeová
seguiria pelo deserto com o povo, até introduzi-lo na terra prometida.
Celebrando
a Páscoa (na verdade Ele instituiu a Ceia e, como Paulo diz, "Cristo é a
nossa Páscoa"), Jesus promete aos discípulos um eterno reencontro no Reino
do Pai, já livres do pecado, da opressão, das tristezas. Ele descreve o roteiro
desse novo êxodo cristão, no deserto desta vida, comprometendo-se a
alimentar-nos não mais com o maná perecível, que foi administrado a Israel, mas
com maná novo, o pão da vida descido do céu (Jo 6.32-58). Promete-nos o pão
vivo, e a fonte de água viva (Jo 4.14; 7.37), referindo-se à fonte que,
jorrando da rocha do Horebe, dessedentou o povo e o gado de Israel, Êxodo
17.1-7, símbolo Dele próprio, Rocha Eterna, que haveria de ser ferida no
Calvário, para que a nossa sede fosse saciada. Deus continua presente na
história humana como único libertador eficaz, através do sacrifício de seu
filho Jesus Cristo, pois a verdadeira escravidão é a do pecado, que além de
acorrentar o homem, veda-lhe a comunhão com Deus.
Israel
é a única nação cuja liberdade não se conquistou às custas de um exército. A
gesta israelita se estende por quarenta anos no deserto, com o próprio Deus à
frente, sob a forma de nuvem que de dia protegia contra o Sol e à noite
brilhava, para indicar-lhes o caminho a seguir. Deus tem um compromisso com a
liberdade, desde os primórdios da história do homem, quando, em vez de
obrigá-lo à obediência, deu-lhe livre-arbítrio para escolher a quem servir.
Conquistada a terra prometida, mais uma vez o povo é convocado a decidir:
Escolhei hoje a quem sirvais, disse Josué, porém eu e a minha casa serviremos ao
Senhor (Js 24.15). Todos os que saíram do Egito tinham morrido, exceto ele e
Calebe. Isto quer dizer que no deserto nasceu uma nova geração.
Na
travessia, morreu o homem velho, dando lugar a uma nova criatura, nascida de
novo, provada nas aflições, de onde ressurge um povo adquirido, geração eleita,
sacerdócio santo, saído das trevas para a luz. Do Egito para Canaã (1 Pd 2.9).
E eis que, na plenitude dos tempos, surge um novo Moisés, Jesus, com novo
concerto, a ser entregue ao novo Israel: a Igreja. Este novo concerto,
sintetizado no Sermão da Montanha, é uma experiência de vida que não visa a
sucessos imediatos, mas aponta para um Reino de Deus, que, embora futuro,
começa aqui, operando mudanças pessoais e sociais. Somente assim se compreende
a abrangência das bem-aventuranças, que resultam de critérios diferentes dos
humanos. Poucos compreenderam o alcance social dessa proposta de Jesus.
O
cristianismo liberta da escravidão. Mas, para tanto, é necessário ao homem
nascer de novo, ser transformado em nova criatura, e assim o Reino de Deus
estará entre nós. Não é um reino para acomodados, mas para os que se põem em
marcha rumo às grandes transformações. Infelizes, desprezados, pobres, famintos
e sedentos, Jesus conclama às bem-aventuranças. É claro que esta convocação
implica em profundas alterações, nas mentes e na sociedade. Não por força, nem
por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor. Implantado este Reino,
haverá bem-estar para todos. Nele cada um se assentará debaixo da sua videira e
da sua figueira, e não haverá quem os espante, porque a boca do Senhor dos
Exércitos o disse (Mq 4.4).
Reverberação:
www.subsidiosebd.com | Artigo: Pr. Paulo
Ferreira – Fonte: Revista OBREIRO – CPAD. Ano 23. N° 15