Os
pregadores de libertação baseiam os seus ensinos nas experiências vindas do
campo missionário. A Bíblia fica em segundo plano, pois eles pinçam as
Escrituras aqui e ali, com interpretações peculiares contrárias à hermenêutica
bíblica e aplicando uma exegese ruim. Paulo Romeiro, em sua obra Evangélicos em
Crise, cita diversas fontes desses relatórios missionários (p. 120-123).
Para
justificar a ideia de que um crente, mesmo cheio do Espírito Santo, pode ser
endemoninhado, tais pregadores costumam apresentar o seguinte argumento: “A
palavra traduzida ‘possuído’, na versão bíblica feita pelo rei Tiago da
Inglaterra (KJV), e a palavra grega daimonizomai. Muitas autoridades em língua
grega dizem que esta tradução está errada. Ela deveria ser traduzida por
‘endemoninhado’ ou ‘ter demônios’” (HAMMOND, 1973, p. 11); “esta palavra
‘possessão’ teologicamente é inadequada e enganosa.
A
expressão correta deve ser endemoninhado. O grego usa a palavra daimonizomenos,
significando endemoninhado, ou echon daimonia, significando ‘ter demônios’ ou
‘estar com demônio’” (ITIOKA, 1991, p. 171). Tudo isso é para dizer que o espírito
imundo pode habitar no corpo do cristão, mas não no espírito: “enquanto o
Espírito Santo pode habitar no espírito, os demônios podem habitar na carne...
Eles se escondem em algum lugar nos cantos” (MILHOMENS, s/d, p. 54, apud
ROMEIRO, 1995, p. 128).
Esses
argumentos são de uma fragilidade exegética assustadora. Poderia ser citada uma
lista considerável de dicionários e léxicos que não sustentam tais ideias, como
os léxicos Liddell & Scott e Walter Bauer’s; o Léxico Grego do Novo
Testamento, de Edward Robinson, edição da CPAD, e o Novo Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento, de Verlyn D. Verbrugge, da Vida
Nova, entre muitos outros. Quanto à exegese, Mateus e Marcos empregam daimonizomai
para os endemoninhados gaderenos (Mt 8.28; Mc 5.15) e Lucas utiliza echon
daimonia (Lc 8.27). A descrição do gadareno em Mateus, Marcos e Lucas mostra que
ele estava completamente dominado pelos demônios, e isso evidencia que não há
diferença entre “endemoninhado” e “possuído pelo demônio”.
Outro
meio de justificar a ideia de que o crente pode ser endemoninhado é desenvolvendo
uma nova antropologia. Eles argumentam ainda que o homem “é um espírito - tem
alma – e vive num corpo” (HAGIN, 1988, p. 89). Esse conceito é defendido também
pela Confissão Positiva. Partindo desse falso conceito, afirmam que o Espírito
Santo habita no espírito humano, na salvação, e os espíritos imundos “estão
relegados à alma e ao corpo do cristão” (HAMMOND, 1973, p. 132).
À luz da Bíblia, o ser
humano é um ser metafísico e moral,
feito
à imagem e semelhança de Deus, constituído de corpo alma e espírito (Gn 1.26;
2.7; 1 Ts 5.23). Alma e espírito são entidades imateriais, distintos um do
outro, embora inseparáveis. O corpo é o invólucro material da alma e do
espírito, pois existe uma “divisão da alma, e do espírito, e das juntas e
medulas” (Hb 4.12). Isso refere-se às três partes distintas da constituição humana.
Fazer jogo de palavras envolvendo corpo, alma e espírito para redefinir teologicamente
o ser humano, afirmando ser ele um “espírito que tem alma e habita num corpo”,
facilita a manipulação do texto para adulterar o pensamento bíblico. A constituição
bíblica do ser humano contraria o falso conceito da presença dos demônios no
corpo e na alma do cristão.
Outros
citam, ainda, passagens bíblicas, como “o mau espírito da parte de Deus, se
apoderou de Saul” (1 Sm 18.10) e fraseologia similar (1 Sm 19.9), além de Judas
Iscariotes (Lc 22.3) e Ananias e Safira (At 5.1-10). Essas três passagens são
interpretadas por eles de maneira distorcida. O argumento sobre o estado
espiritual e psicológico de Saul precisa ser analisado com muito cuidado:
“E o Espírito do SENHOR se retirou de Saul, e o assombrava um
espírito mau, da parte do SENHOR” (1 Sm 16.14); “Porém o espírito mau, da parte
do SENHOR, se tornou sobre Saul” (1 Sm 19.9); “o mau espírito, da parte de
Deus, se apoderou de Saul” (1 Sm 18.10). Antes de tudo, convém salientar que
Saul já estava desviado e havia sido rejeitado por Deus (1 Sm 15.23; 16.1). Então,
essa passagem não ajuda em nada na possibilidade de um crente fiel ter
demônios.
O
que aconteceu com Saul é que o Espírito Santo se apoderou dele por ocasião de
sua unção para reinar sobre Israel (1 Sm 10.6, 10; 11.6). Uma vez que “o
Espírito do SENHOR se retirou de Saul”, isso indica não ser ele mais o
escolhido para reinar, e dessa forma Deus enviou o “espírito mau” para o
assombrar e o atormentar. Trata-se de um espírito da parte de Deus, e não de
Satanás.
O
exemplo de Judas Iscariotes é inconsistente, pois está escrito que “Satanás
entrou em Judas, chamado Iscariotes” (Lc 22.3, ARA), mas Jesus havia dito antes
que Judas era “um diabo” (Jo 6.70). Assim, “dizer que ele foi um cristão é
forçar demais o texto bíblico, e nem foi essa a opinião do Senhor sobre ele”
(ROMEIRO, 1995, p. 125).
A
passagem de Ananias e Safira (At 5.1-11) não confirma sua doutrina, pois o
texto sagrado declara que Ananias e Safira mentiram ao Espírito Santo, ou seja,
mentir à Igreja é mentir a Deus. Não está escrito que ambos ficaram possessos
ou endemoninhados. Eles foram incapazes de discernir o Espírito Santo na vida
da Igreja. O acontecido é que eles não vigiaram e por isso agiram sob
influência de Satanás, mentindo ao Espírito Santo (v. 3). Isso pode acontecer
com um cristão vacilante, e não é possessão maligna, por isso devemos orar e
vigiar, para não cairmos em tentação. Jesus disse: “o espírito está pronto, mas
a carne é fraca” (Mt 26.41). Não está escrito que Pedro expulsou o “demônio” de
Ananias e Safira.
O
Senhor Jesus afirmou que todos os espíritos demoníacos deixam o corpo da pessoa
que se converte ao seu evangelho (Lc 11.24). Tal corpo fica varrido e adornado,
como obra do Espírito Santo (v. 25). A Bíblia, ensina ainda, que o corpo do cristão
é templo do Espírito Santo (1 Co 6.19) e que o corpo, a alma e o espírito do
cristão “pertencem a Deus” (v. 20). Temos promessas de Deus de que o maligno
não nos toca: “o que de Deus é gerado conserva-se a sim mesmo, e o maligno não
lhe toca” (1 Jo 5.18).
O
cristianismo baseia-se na Bíblia, e não em experiências humanas contrárias às
Escrituras Sagradas.
A
doutrina da maldição hereditária, a teoria dos espíritos territoriais e a ideia
de expulsar demônios dos próprios crentes em Jesus mostram-se práticas que destoam
do ensino bíblico. Isso atrapalha o crescimento espiritual dos crentes, que
ficam presos a ritos e crendices em vez de se fortalecerem na oração e na
Palavra de Deus para proclamarem as boas-novas de Jesus Cristo.
Divulgação:
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Esequias/ SOARES, Daniele. Batalha Espiritual. O povo de Deus e a Guerra Contra
as Potestades do Mal. 1ª edição de 2018 - CPAD