O legado
de Lutero e sua Reforma para a igreja e o mundo é imenso. Vai desde a
popularização da Bíblia para o povo até a liberdade de consciência, tão
inerente à pessoa como cidadã e hoje inserida nas Constituições das nações
democráticas.
O seu legado passa
também pela moderna língua alemã, pela doutrina do sacerdócio universal dos
crentes, por uma igreja desvinculada do Estado, pela liturgia dos nossos
cultos, pela hinologia, além de muitas outras contribuições. Lutero escreveu,
como já dito, desde política a vida matrimonial. Discorrer sobre a herança de
Lutero é mencionar temas que não só atingem a pessoa individualmente, mas
também toda a sociedade.
A EXPERIÊNCIA DE LUTERO COM DEUS
Podemos enumerar muitas
contribuições, no entanto existe uma que é a sua própria experiência com Deus e
que nos faz pensar em nós mesmos.
Lutero, tal como Paulo,
descobriu o caráter gracioso de Deus. De nossa parte é uma experiência
"passiva" em que Deus é o autor desta relação. Lutero descobriu que o
cristão ao orar, louvar e exaltar o faz porque o próprio Deus o impulsiona a
fazer. Deus é o "ativo". É Ele que realiza "tanto o querer
quanto o efetuar". Quando descobrimos essa verdade, tal qual Lutero,
"as portas do paraíso" se abrem para nós e tudo passa a ter sentido,
mesmo as adversidades e desafios.
Mas, o legado de Lutero não
ocorre somente nas áreas teológicas, bíblicas ou espirituais. Lutero é como um
"rio que desagua no mar". Podemos acompanhar Lutero "enquanto
rio", no entanto suas ideias se ampliam transformando-se num
"verdadeiro mar". E claro que podemos ver também em Lutero não
somente os prós, mas também os contras. Todavia, os prós são bem superiores aos
contras. Lembrando que Lutero foi um filho do seu tempo e refletiu por
intermédio de seus escritos, palestras, conselhos e cartas o seu ambiente
religioso e sócio-cultural.
A NOVA COMPREENSÃO DAS ESCRITURAS
Um grande legado foi a nova
compreensão das Escrituras. Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que Lutero
trouxe uma nova compreensão das Sagradas Escrituras. Vamos relacionar essa
verdade com um fato que a pesquisa moderna tem contestado historicamente, mas
que serve como ilustração (O importante é a grande lição que ele nos traz,
independente da veracidade).
Trata-se da Bíblia acorrentada.
Provavelmente, a primeira vez
que o reformador deparou-se com uma Bíblia, ela estaria acorrentada. Essa
prática se deve ao fato de que uma Bíblia de Gutenberg, em fins do século 15 e
início do 16, era de grande valor. Segundo Martin Dreher, "equivalia a uma
junta de bois. Caso fosse roubada, o prejuízo seria grande. O jeito era
acorrentá-la". Embora esse episódio careça de veracidade, a prática de
acorrentar Bíblia era comum na época evitando-se assim o furto.
Por analogia podermos dizer
que Lutero libertou as mentes cativas de uma interpretação "vinda de
cima", porque as pessoas passaram a ler a Palavra de Deus com seus
próprios olhos. Assim, Lutero teria contribuído para a libertação das
Escrituras de seus "grilhões". As Escrituras passaram a falar por si
mesmas.
Afirmava-se na época de
Lutero que só a Igreja e o papa podiam interpretar as Escrituras e que não deviam
ser toleradas opiniões e liberdades quanto à consciência e ao culto. Lutero não
pensava e nem agia assim. Ele popularizou a Bíblia, fazendo-a chegar ao povo.
Não eram os leigos, mas os clérigos que utilizavam da Bíblia.
E Liam-se as Escrituras com olhos
filosóficos ou dos Pais da Igreja. Declarava-se no século 16 que as Escrituras
eram obscuras e que a Igreja reservava a si o direito de interpretá-las, à sua
maneira. Dizia-se, principalmente nos mosteiros, que a leitura da Bíblia era
perigosa e que provocava rebeliões.
Os monges e padres conheciam
somente a versão latina e a Bíblia completa estava disponível somente aos
professores e pesquisadores. Lutero rompe com esse modelo e a Bíblia passa a
ser patrimônio de todos: clero, leigos, poderosos, camponeses, homem, mulher,
adultos e jovens. A Bíblia tornou-se tão popular que, já em 1535, um em cada
setenta alemães possuía um Novo Testamento.
Pelo princípio "Sola Scriptura" ("Somente as Escrituras") dos
reformadores, nada poderia ser dito fora das Escrituras. Sobre a penitência
como tesouro da igreja, Lutero foi categórico: "Porque - como já disse
muitas vezes - isso, não pode ser provada por nenhuma passagem da Escritura nem
ser demonstrado por argumentos racionais. Além disso, os que sustentam isso não
o provam, mas simplesmente contam, como todos sabem. Ora, eu disse
anteriormente que afirmar na igreja alguma coisa,
para a qual não se pode apresentar qualquer argumento da razão ou passagem da
Escritura comprovando, é expor a igreja à prisão dos inimigos e hereges,
já que, segundo o apóstolo Pedro, devemos prestar contas da fé e esperança que
há em nós".
Lutero não foi o pioneiro da
liberdade de consciência. Vozes anteriores, como Boécio (480-524) e Cassiodoro
(480-575), mencionaram a "consciência liberta". No entanto, durante a
Idade Média (476-1453), raramente foi mencionado esse termo tão comum aos
nossos dias. Lutero não inventou a expressão, mas contribuiu para sua
proeminência. Fazer o que Lutero fez e posicionar-se como ele se posicionou foi
um grande avanço em sua época.
Outro legado foi o da redescoberta
por Lutero da doutrina bíblica da justificação pela fé, que "minou todo o
sofisticado sistema eclesiástico que impunha múltiplas cargas de consciência e
tributos financeiros ao povo".
Lutero, ao apontar a livre
graça de Deus, abriu espaço para a libertação da consciência e dos corpos. Ele
abre as portas para a graça libertadora. Com a consciência livre, a pessoa está
livre para pensar e agir. Com a consciência livre, pode-se reivindicar toda
mudança sem temor, pois a mudança começa na consciência.
O filósofo prussiano Fichte
afirma, segundo Cárter Lindberg, "que a contribuição de Lutero à liberdade
humana é percebida como uma contribuição universal, e não simplesmente
nacional".
Existem
várias citações ao longo da vida e escritos de Lutero em que ele invoca a sua
consciência. Porém, uma se destaca, quando, diante do imperador do Sacro
Império Romano-Germânico, foi-lhe imposto retratar-se. Ele respondeu:
"Visto que S. Majestade e Vossas Senhorias exigem uma resposta simples,
quero dá-las sem cornos e sem dentes do seguinte modo: a não ser que seja
convencido por testemunho das Escrituras ou por argumento evidente - pois não acredito nem nos papas, nem nos concílios
exclusivamente, visto que é certo que os mesmo erraram muitas vezes e se
contradisseram a si mesmos -, estou convencido pelas Escrituras por mim
aduzidas e por minha consciência, que está presa à Palavra de Deus, que não
posso e nem quero retratar-me de nada, porque agir contra a consciência não é
prudente nem íntegro. Que Deus me ajude. Amem".
Ao dizer que "não é
certo nem recomendável proceder contrariamente a sua consciência", Lutero
ouviu o porta-voz da igreja dizer-lhe: "Abra mão da consciência. Nada há
mais seguro do que submeter-se à igreja". Ou seja, tradição acima das
Escrituras — isso Lutero não tolerava!
Um exemplo prático da
liberdade de Cristo na vida de Lutero está na própria grafia de seu sobrenome
Lutero. Martin Dreher informa que o reformador passou a utilizar-se deste
sobrenome a partir dos seus escritos de 1518. Originalmente seu sobrenome era
"Luder" ou "Lüder". No alemão moderno, "Luder" é
traduzido por "vagabundo". Temos então Martinho Luder. Após anos de
reflexões, principalmente em Paulo, o reformador descobriu a liberdade em
Jesus. Assim, liberto pela graça e fé em Cristo, passou a grafar o sobrenome
utilizando-se da palavra grega "eleutheria", que significa
"liberdade". Surge então "Eleutherius", da qual deriva a
grafia Luther/Luthero/ Lutero: "Martinus Eleutherius" (Martinho
Lutero), aquele que havia descoberto a "eleutheria", ou seja, a
liberdade em Cristo.
(Texto adaptado do livro
"Lutero - Época, Vida, Legado", CPAD, de Vantuil G. dos Santos).
Fonte: Jornal Mensageiro da Paz, outubro
de 2017
Autor: Pr. Vantuil Gonçalves dos Santos