Se a doutrina da eleição provoca a ira dos incrédulos, entre os crentes a
doutrina da perseverança surte o mesmo efeito. As caricaturas que os
proponentes das várias opiniões pintam dos conceitos de seus oponentes
usualmente não têm base na realidade. Alguns da persuasão wesleyana-arminiana
insistem acreditarem os calvinistas que, uma vez salvos, podem cometer os
pecados que quiserem, tantas vezes quantas quiserem, e ainda continuarem
salvos-como se acreditassem que a obra santificadora do Espírito e da Palavra
não os afeta. Por outro lado, calvinistas
insistem que os wesleyanos-arminianos acreditam que qualquer pecado cometido
compromete a salvação, de modo que "caem dentro e fora" da salvação
cada vez que pecam-como se acreditassem que o amor, paciência e graça de Deus
são tão frágeis que rompem à mínima pressão. Qualquer pessoa bíblica e
teologicamente alerta reconhecerá a mentira em cada uma dessas caricaturas. A
presença de extremos tem levado a generalizações lastimáveis.
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Naturalmente, é impossível aceitar como igualmente verdadeiras as posições
calvinista e wesleyana. Ou a Bíblia oferece à pessoa verdadeiramente salva a
garantia de que, por mais longe que se afaste da prática do cristianismo bíblico,
não se apartará definitivamente da fé, ou essa garantia não existe. Ambas as
posições não podem ser verdadeiras. Mas é possível buscar uma
orientação bíblica mais equilibrada.
Biblicamente, perseverança não significa que todo
aquele que professar a fé em Cristo e se tornar parte de uma comunidade de
crentes tem a segurança eterna. Em 1 João 2.18,19, lemos que o surto de
"anticristos" demonstra que "é já a última hora. Saíram de nós,
mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco; mas isto é para que se manifestasse que não são todos
de nós".
Este é um dos textos prediletos dos calvinistas, para apoiar o argumento de que os
que "saem" da fé a ponto de se perderam eram apenas crentes nominais.
Alguns argumentam que Simão, o mago (At 8.9-24), é um
exemplo de semelhante pessoa.
Os não-calvinistas não prestam nenhum
serviço à sua posição teológica quando procuram diminuir o impacto dessas
declarações. Nem todas as pessoas em nossas igrejas e nem todos os que
oferecem evidências exteriores de fé são crentes de verdade. Jesus disse a
alguns que reivindicavam possuir poderes espirituais extraordinários (e Ele
não negava o fato) nunca os haver conhecido (Mt 7.21-23). Declarações desse
tipo não visam aterrorizar o coração do crente genuíno e sincero, mas advertir
aqueles que dependem de realizações exteriores para ter a certeza da salvação.
De acordo com as Escrituras, a
perseverança refere-se à operação contínua do Espírito Santo, mediante a qual a
obra que Deus começou em nosso coração será levada a bom termo (Fp 1.6). Parece
que ninguém, seja qual for a sua orientação teológica, é capaz de levantar
objeções a semelhante declaração. E gostaríamos que o assunto pudesse ser
deixado como está. Porém, tendo em vista a necessidade da exegese da bíblica
com integridade, tal desejo revela-se impossível. O que diz a Bíblia,
especificamente, a esse respeito?
Há relevante apoio, no Novo
Testamento, à posição calvinista. Jesus não perderá nada de tudo quanto
Deus lhe deu (Jo 6.38-40). As ovelhas jamais perecerão (10.27-30). Deus sempre
atende as orações de Jesus (11.42), e Ele orou ao Pai que guardasse e
protegesse os seus seguidores (17.11). Somos conservados por Cristo (1 Jo
5.18). O Espírito Santo em nós é o selo e a garantia da nossa redenção futura
(2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.14). Deus guardará o que confiarmos a Ele (2 Tm 1.12). Ele é
poderoso para salvar em todo o tempo aqueles que nEle creem (Hb 7.24,25). O seu
poder nos guarda (1 Pe 1.5). Deus em nós é maior do que qualquer coisa fora de
nós (1 Jo 4-4). Que garantias grandiosas! Nenhum crente pode (nem deve) viver
sem elas. E, se fosse apenas isto que o Novo Testamento tivesse a dizer, a
posição do calvinismo estaria segura e inabalável.
Porém há mais. Os wesleyanos-arminianos
aceitam sem hesitação a relevância e garantias dos textos supra. Mas parece que
os calvinistas
às vezes apelam a métodos tortuosos, na exegese e na hermenêutica, a fim de
evitar as implicações de outros textos neotestamentários. Não é
possível apenas a apostasia formal, mas também a real (Hb 6.4-6; 10.26-31). A palavra grega apostasia ("apostasia",
"rebelião") provém de aphistêmi ("partir", "ir embora") e
transmite o conceito de modificar a posição em que a pessoa está de pé.
Millard Erickson diz: "O escritor... está tratando de uma situação
hipotética... Jesus [Jo 10.28] está nos dizendo o que vai acontecer: as suas ovelhas não
perecerão. Então, pode-se entender que a Bíblia diz que poderíamos apostatar, porém, mediante o
poder de Cristo para nos conservar, isso não nos acontecerá".
Se tal pode acontecer, por que a possibilidade
existiria somente em hipótese? Erickson e a maioria dos calvinistas referem-se a Hebreus 6.9 como evidência: "Mas de vós, ó amados, esperamos coisas melhores e
coisas que acompanham a salvação, ainda que assim falamos". Semelhante
justificativa fica sendo tênue à luz de Hebreus 6.11,12: "Mas desejamos que cada um de vós mostre o
mesmo cuidado até ao fim, para completa certeza da esperança; para que vos não
façais negligentes, mas sejais imitadores dos que, pela fé e paciência, herdam
as promessas". Continuar na fé e na prática confirma nossa esperança e
herança. E realmente possível fazer uma exegese de Hebreus 10.26-31, mesmo a despeito do v. 39, de modo a concluir que se refira meramente a uma
possibilidade lógica, e não real?
Prosseguindo nesse raciocínio, citemos a
advertência de Jesus: "O amor de muitos se esfriará. Mas aquele que perseverar
até ao fim será salvo" (Mt 24.12,13). Ele diz que olhar para trás nos torna indignos do
Reino (Lc 9.62) e adverte: "Lembrai-vos da mulher de Ló" (Lc 17.32). Jesus diz ainda que, se a pessoa não permanecer
nEle, será cortada (Jo 15.6; cf. Rm 11.17-21; 1 Co 9.27). Paulo diz que podemos ser alienados de Cristo e
cair da graça (Gl 5.4); que alguns naufragaram na fé (1 Tm 1.19); que alguns abandonarão (gr. aphistêmi) a fé (1 Tm 4.1); e que "se o negarmos, também ele nos
negará" (2 Tm 2.12). O escritor aos Hebreus diz que "a casa [de
Deus] somos nós, se tão-somente conservarmos firme a confiança e a glória da
esperança até ao fim" (3.6); que devemos cuidar para que ninguém entre nós tenha
"um coração mau e infiel, para se apartar [gr. aphistamai] do Deus vivo" (3.12); e que "nos tornamos participantes de Cristo,
se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim" (3.14).
Pedro menciona aqueles que "depois de terem
escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus
Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último
estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o
caminho da justiça do que, conhecendo-o, 101 desviarem-se do santo mandamento que lhes fora dado. Deste
modo, sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provérbio se diz: O cão voltou ao
seu próprio vômito; a porca lavada, ao espojadouro
de lama" (2 Pe 2.20-22).
João diz que a vida eterna não é possessão do
crente, independente de ele ter a Cristo (1 Jo 5.11,12). O Pai "deu também ao Filho
ter a vida em si mesmo" no mesmo sentido em que o Pai tem vida por seu
próprio direito e natureza (Jo 5.26). A nós não foi concedido esse direito. A vida
eterna é a vida de Cristo em nós, e nós a possuímos somente à medida que
estamos "em Cristo".
Os calvinistas, dizendo que essas advertências são
essencialmente hipotéticas para os crentes verdadeiros, empregam várias
ilustrações. Erickson refere-se a pais que temem que seus filhos saiam correndo
para a rua e sejam atropelados por um automóvel. Eles têm duas opções:
construir um muro alto que impossibilite a saída de dentro do quintal (mas isto
restringiria a liberdade da criança); ou podem advertir a criança contra o
perigo de sair correndo para a rua (neste caso, a criança poderia fazer isso,
mas não o fará). Se, porém, os automóveis (os perigos) realmente não existem, e
se a criança sabe disso, funcionará realmente a advertência como dissuasão?
Permita-me uma outra analogia. Vamos imaginar que estamos dirigindo nosso carro pela estrada, à noite. Em
diferentes trechos, passamos por sinais de advertência: "Curva
fechada!" "Ponte caída!" "Deslizamento!" "Estrada
estreita e sinuosa!" "Declive forte!" "Obras na
estrada!" E nenhum desses perigos acaba surgindo. Iremos pensar que foi
uma brincadeira de mau gosto, ou algum louco colocou aqueles sinais. De que
maneira seriam advertências, se não correspondessem à realidade?
Os calvinistas argumentam ter a
certeza da salvação em virtude de sua posição teológica, ao contrário dos wesleyanos-arminianos. Mas seria
essa a verdade? Tendo em vista passagens bíblicas como os capítulos 6 e 10 de Hebreus e
as demais mencionadas, como podem os calvinistas alegar maior certeza de salvação que
os arminianos? Como poderão ter certeza de estar entre os eleitos antes de
chegar ao Céu? Se a pessoa pode chegar tão perto do Reino quanto descrito na
Epístola aos Hebreus, em 2 Pedro e em Mateus 7.22 e ainda
não estar "dentro" do Reino, de onde provém essa certeza maior? Na
realidade, a certeza da salvação dada a todos os crentes verdadeiros mediante o
Espírito Santo que em nós habita, é que, pela graça mediante a fé, estamos em
Cristo, nossa redenção e justiça. E, estando nEle, temos a segurança eterna.
Esta verdade aplica-se aos calvinistas e também aos wesleyanos-arminianos.
Ambos os pontos de vista concordam que não ousamos presumir, mas não
precisamos ter medo.
VEJA – CLIQUE :
Fonte: Teologia Sistemática – Stanley M. Horton
Reverberação: Subsídios EBD